A crítica equivocada ao “jornalismo militante” e a hipocrisia dos monopólios da comunicação
A prática do mau jornalismo pela BBC, de Londres, manipulando falas de Donald Trump, com o objetivo de provar, de forma contundente, que o presidente fez apelos diretos aos cidadãos norte-americanos para a invasão do Capitólio, em 2021, continua dando “pano para manga”. Este fato representou um duro golpe para a credibilidade deste poderoso grupo jornalístico britânico.
Não é o caso, porém, de entrar no mérito da questão porque realmente Trump, derrotado de forma limpa e democrática para Biden nas eleições presidenciais, realmente questionou o resultado (alegou fraude) e fez ações ilegítimas para tentar demonstrar a sua tese absurda. Isso não significa que se possa aceitar, na prática do jornalismo responsável, o que a BBC fez, distorcendo, vergonhosamente, os fatos.
A reação de alguns jornais brasileiros, no entanto, merece alguns reparos. O Estado de S. Paulo, em editorial publicado em 12 de novembro último, chama a atenção para “o perigo do jornalismo militante” e comenta: “a manipulação das informações pela BBC expôs um vício sistêmico: os jornalistas que se creem iluminados já não informam, pregam. E, ao fazê-lo, traem o público e degradam a democracia”.
De novo, não vamos entrar no mérito da questão: concordamos que os jornalistas não devem manipular as informações e que, se deturpam a realidade dos fatos, devem ser condenados por isso porque a ética profissional não admite estes desvios.
Defendemos a tese, no entanto, de que a “expressão jornalismo militante” não é adequada porque incorpora um preconceito e manifesta uma visão ingênua do “fazer jornalismo”, como se repórteres, redatores, editores e proprietários dos veículos de comunicação fossem absolutamente neutros ou imparciais (imparcialidade não existe!).
Afinal de contas, os jornalistas (e qualquer um de nós) escrevem e opinam sobre temas ou assuntos sem levar em conta todos os filtros que interferem nas nossas falas e nos nossos textos jornalísticos? Lógico que não. Os estudiosos lembram que há sempre “um lugar de fala” e que as informações e as opiniões que expressamos têm a ver com uma série de fatores, como gênero, raça, credo religioso, preferência política, ideologia, perfil social e econômico, nível de alfabetização e por aí vai.
Particularmente, partimos do pressuposto de que os jornalistas não devem (e, se quisessem, não conseguiriam!) ser imparciais no sentido de não tomar posição com respeito a uma série de temas porque, quando éticos, têm, obrigatoriamente, compromisso com causas, princípios e valores. Eles devem estar comprometidos com a democracia, a liberdade de expressão de verdade (não a que frequenta o discurso bolsonarista para justificar o ataque às instituições democráticas), a preservação do meio ambiente, a redução da desigualdade social, a equidade da Justiça (ela protege sempre os poderosos), a defesa das minorias e a condenação de qualquer tipo de preconceito (religioso, de gênero, de raça, dentre muitos outros).
Essa militância, em prol dos valores democráticos e da justiça social, é absolutamente necessária, e assume um caráter cívico, cidadão, e deve fazer parte do “ethos” dos jornalistas.
A omissão dos jornalistas em relação a condutas não éticas e o desrespeito aos princípios e valores que devem fazer parte da conduta de profissionais, parlamentares, governantes contribuem para a degradação da cidadania.
Não se trata, portanto, de ser ou não militante, mas de, ao defender posições, não manipular os dados e informações, para que eles não entrem em confronto com a realidade e as evidências dos fatos.
Os jornalistas da BBC (os diretores já foram demitidos e deveriam se mesmo alijados da profissão) cometeram um grave equívoco, mas isso não tem nada a ver com militância, mas com a afronta à ética profissional.
Os monopólios da comunicação que andaram (e continuam) comentando o fato, precisam, como diz o ditado, “olhar para o próprio rabo” porque cometem erros de cobertura que não diferem muito desta conduta específica dos jornalistas da BBC. Durante a ditadura, em eleições presidenciais (a do Collor, por exemplo) e quase todos os dias eles tomam posições em favor dos grupos políticos e econômicos que são seus aliados (sobretudo os que patrocinam a sua cobertura) e tentam moldar a opinião pública para fazer prevalecer os seus interesses e privilégios.
Os patrões do jornalismo brasileiro “militam” em prol da sua sobrevivência e, ao longo da história, têm flertado com ditadores, engrossado o lobby de empresas poderosas, demonizado (e continuam demonizando) os movimentos sociais e, inclusive, têm contribuído para a insegurança do mercado profissional, demitindo sem dó os jornalistas e impondo condições de trabalho que ferem os direitos trabalhistas, como o processo agressivo de pejotização da categoria.
Cuidado com o andor que o santo é de barro, reza o ditado. Os jornalistas não escrevem livremente nas redações brasileiras (os patrões e a linha editorial dos veículos os patrulham) e têm estado reféns das convicções políticas e ideológicas dos empresários da comunicação e de ações não legítimas no mercado da informação. O jornalismo patrocinado, que frequenta os monopólios da comunicação, demonstra que os patrões do jornalismo não são tão imparciais assim e que se curvam diante de interesses escusos com o objetivo de garantir a sobrevivência de suas empresas.
Chega de hipocrisia. Há, certamente, jornalistas sem caráter, como em toda profissão, mas os empresários não são os “bonzinhos da história”, não abrem mão de seus lucros ainda que à custa da integridade da informação. Antes de culparem os jornalistas, deveriam fazer uma autocrítica de suas posturas.
Aliás, os jornalistas deveriam mesmo estar mais mobilizados, lutando, junto com os seus sindicatos, com as entidades de sua categoria, para a defesa da sua profissão. Essa militância vale a pena e pode garantir o nosso futuro.
Wilson da Costa Bueno, Diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa, consultoria na área de Comunicação Corporativa/ Jornalismo Especializado.